23/06/2016

História, memória, tradição: brincador de boi e a preservação da identidade brasileira

Por Tamires Santana




O Brasil é um país festeiro!

De janeiro a dezembro existem no calendário comemorações e rituais populares de norte a sul deste país. É festa popular jorrando pra tudo quanto é lado. Haja disposição e economias financeiras para acompanhar o ritmo.

Normalmente não temos ideia da proporção da riqueza cultural que nossa identidade é formada. Só o fato de pen-sar-mos que a nacionalidade do brasileiro é composta por índios, brancos e negros, um portal paralelo é aberto e dentro surge um universo enorme de crenças, costumes e diferentes visões de mundo, que ficam lá, flutuando, aguardando mentes e corações abertos mapearem e se reconectarem com a vastidão cultural.

Mas enquanto poucos entram no portal, trataremos aqui sobre festividades que se baseiam em mitos que tem o Boi como narrativa básica central, ligando a um enredo e outros personagens.

Basicamente, a lenda do Boi-Bumbá ou Bumba-meu-boi mais aderida Brasil afora, conta a história de uma escrava chamada Catirina (ou Catarina), que estava grávida, e a qual pede ao marido Chico (Pai Francisco - em algumas versões se chama Mateus) para comer língua do boi preferido do amo. O escravo atende ao desejo da esposa. Quando o fazendeiro descobre, chama pajés e curandeiros para salvar o animal, que acaba ressuscitando.

Por causa desta morte e ressurreição surgem diferentes homenagens, danças, cortejos, indumentárias, temas e nomes. Em Pernambuco é chamado boi-calemba ou bumbá; no Maranhão, Rio Grande do Norte, Alagoas e Piauí de bumba meu boi; no Ceará, é conhecido por boi de reis, boi-surubim e boi-zumbi; na Bahia, boi-janeiro, boi-estrela-do-mar e mulinha-de-ouro; em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Cabo Frio e Macaé (em Macaé, há o famoso boi do Sadi) é bumba ou folguedo-do-boi; no Espírito Santo é boi de reis; em São Paulo é boi de jacá e dança-do-boi; no Pará, Rondônia e Amazonas, é boi-bumbá ; no Paraná, em Santa Catarina, é boi-de-mourão ou boi-de-mamão; no Rio Grande do Sul é bumba, boizinho ou boi-mamão.

Tem boi pra todo mundo, tanto que atualmente o Bumba Meu Boi, especificamente registrado com este nome, é tombado como patrimônio cultural do Brasil pelo Iphan - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

É mais fácil um boi voar do que…



Sobre seu surgimento no Brasil, contos e lendas são os principais oradores, mas não se debruçam em uma fundamentação histórica. De forma oficial, de acordo com estudos, a primeira vez que o boi foi usado para brincar com o imaginário popular foi no estado do Piauí.

Ocorreu que cansado de esperar por recursos prometidos pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais para a construção da ponte que ligava Recife à cidade Maurícia, e após o envio de carta do Conselho dos XIX à Amsterdã, a qual dizia, em tom irônico, a falta de notícias sobre a ponte e a crença de que a mesma nunca seria terminada, o Conde Maurício de Nassau encarrou o ocorrido como um desaforo, vindo a construir com recursos próprios a obra.

Dentre as grandes obras desenvolvidas pelo Conde, a ponte construída sobre o rio Capibaribe demorou três anos para ser realizada. Devido à demora, o povo dizia que “era mais fácil um boi voar do que a ponte ser construída”. No entanto, no domingo, 28 de fevereiro de 1644, o empreendimento foi concluído.

Na inauguração, o Conde de Nassau, por sua vez, resolveu brincar com o imaginário dos moradores, além do interesse em obter um maior número de pessoas pagando pedágio no local, pois necessitava de uma devolutiva do que foi gasto. No dia da sua inauguração, João Maurício anunciou que um boi manso, pertencente a Melchior Álvares, iria voar. O episódio, denominado Boi Voador, foi narrado pela testemunha ocular frei Manuel Calado em sua crônica "O Valeroso Lucideno", também publicada em um jornal de Recife (PE) no ano de 1840.

“Para a festa, para a qual foram convidados os membros do Supremo Conselho, mandou abater e esfolar um boi, e encher-lhe a pele de erva seca, tendo posto esta encoberta no alto de uma galeria que tinha edificada no seu jardim. Pediu a Melchior Álvares emprestado um boi muito manso que aquele tinha, e o fez subir ao alto da galeria e, depois de visto pelo grande número de pessoas presentes, mandou-o fechar em um aposento, de onde tiraram o outro couro de boi cheio de palha, e o fizeram vir voando por umas cordas com um engenho, para grande admiração de todos. Tanta gente passou de uma para outra parte da ponte que, naquela tarde, rendeu mil e oitocentos florins, não pagando cada pessoa mais que duas placas à ida, e duas à vinda.”

Se por um lado existem dezenas de nomes para nomear as festividades que tem como figura principal a presença de um boi, igualmente ocorre com o formato das comemorações.


Folguedos de bois


Grupo de Cavalo Marinho Estrela Brilhante, de Pernambuco, com Boi 
de Mamão Arreda Boi, da Barra da Lagoa (PB).

Os folguedos são festas de caráter popular cuja principal característica é a presença de música, dança e representação teatral. Vicente Salles (1970) ligou o folguedo à presença do negro na Amazônia. O bumbá teria se estruturado na primeira metade do século XIX, antes da revolta popular da Cabanagem, numa época de precária estabilização do regime escravista na região e teria resistido à desorganização do regime servil, espraiando-se pela sociedade. De fato, já na primeira metade do século XIX, breves notícias em jornais ou relatos de viajantes registraram o folguedo em São Luís (Maranhão), Óbidos e Belém (Pará) e Manaus (Amazonas). Sua designação já era clara: um "bomba" ou "bumbah". Palavras de expressiva etimologia cuja ambivalência vale assinalar: bumba ou bumbá = surrar, bater e dançar (Cascudo, 1984).

Na Zona da Mata Setentrional de Pernambuco, Alagoas e agreste da Paraíba, o folguedo Cavalo Marinho acontece entre julho e janeiro, com destaque para os dias de natal, ano-novo e dia de reis. No interior, para o norte do Recife, apresenta-se durante a safra da cana-de-açúcar. Apesar de ser uma variação do Bumba meu boi, tem características próprias, é um auto que reúne cenas dramáticas, música, dança, fantasias e poesia (loas) improvisada. Apesar de atualmente mulheres participarem, tradicionalmente os brincantes são homens e a dança geralmente é passada de pai para filho. O acompanhamento musical fica por conta do banco, um grupo de músicos que tocam Rabeca, Pandeiro, Bage (Reco-reco) e Mineiro (Ganzá) e as danças são diversas, como mergulhão (maguião), São Gonçalo e coco.

O folguedo acontece ao longo de uma noite inteira e só ao raiar do dia é que surge o boi, já na sequência final da brincadeira. Na encenação dos personagens, estariam representando uma crítica às relações hierárquicas definidas através das relações de exploração entre patrão e empregado ou, pelo contrário, apenas reproduzindo e reafirmando tais relações.

“O enredo do Cavalo-marinho concentra-se em torno do Capitão, um proprietário rural. A história conta que o Capitão faz uma festa em homenagem aos Santos Reis do Oriente e chama os Nêgos Mateus e Bastião para tomar conta da festa, iniciando assim a brincadeira. No auto, o Capitão Marinho representa o senhor do engenho; Mateus e Bastião os negros, os escravos ou trabalhadores; os galantes e damas são as elites que vêm para a festa; o soldado é o representante da lei; o boi é um elemento constante para o homem do campo.”

Apresentação de boi de reis em Rio Tinto (PB)

Já o folguedo Reis de Boi é uma manifestação popular do folclore religioso brasileiro que une as temáticas dos Santos Reis com o Bumba-Meu-Boi. Originário do Teatro Medieval de Rua, da Península Ibérica, ocorre no Espírito Santo e apresenta-se durante o ciclo de natal, prolongando-se até 3 de fevereiro (dia de São Braz), sendo reapresentado no dia 20 de Fevereiro (dia de São Sebastião). Atualmente, segundo a Prefeitura mateense, existem cerca de onze grupos de Reis de Boi na cidade, os quais apresentam-se na "tenda cultural" Verão Guriri, em festas de comunidades e festividade do aniversário da cidade de São Mateus (SC).


Ninguém sabe informar sobre a criação do Reis-de-Boi; dizem apenas que ‘tudo começou com o nascimento de Cristo’”.


Além destes folguedos, há ainda outros como: Boi Pintadinho (ocorre em algumas localidades de Minas Gerais, no sul do Espírito Santo e Rio de Janeiro), Boi Tinga (ocorre na cidade de São Caetano de Odivelas, no nordeste do Estado do Pará), Boi-de-Mamão (ocorre em Santa Catarina), entre outros.


Boi que fala

Em Barão Geraldo, distrito de Campinas (SP), a Festa do Boi Falô, criada em 1988 pelo subprefeito Attilio Vicentin e o empresário Gilberto Antoniolli, realiza uma grande macarronada pública servida a todos os presentes, nas sextas-feiras santas, para relembrar a lenda local.

“Conta a história que numa Sexta-feira Santa, um capataz da Fazenda Santa Genebra ordenou a um escravo que fosse buscar alguns bois que estavam deitados num local conhecido como Capão do Boi (atualmente bairro Jardim Santa Genebra II), mas ao chegar ao local para tocar os bois, um dos animais recusou-se a levantar-se. Ao ser açoitado pelo escravo, o boi disse: “hoje não é dia de trabalhar! Hoje é dia de Nosso Senhor Jesus Cristo!“. O escravo, aterrorizado, voltou à sede da Fazenda e contou ao capataz o ocorrido e o próprio foi ao local concluir a tarefa e também ouviu o boi falar.”


A maior ópera a céu aberto da América Latina


Ritual Xamânico Kaxinauá do Boi Caprichoso em 2010


O Festival de Parintins é a potência do que se refere ao folclore brasileiro. Realizado na cidade de Parintins, situada na ilha Tupinambarana, no Amazonas, é a maior ópera a céu aberto da América Latina, a fonte de conhecimento do Carnaval carioca e paulistano para produzir as toda a ousadia alegórica. A apresentação consiste no duelo entre as agremiações Garantido (boi branco, cujas cores emblemáticas são o vermelho e o branco) e Caprichoso (boi preto, cujas cores emblemáticas são o azul e o branco).

Conta a tradição que o Boi o Garantido foi criado em 1913 por Lindolfo Monteverde, fruto de uma promessa. Aos 11 anos de idade, Lindolfo, muito doente, prometeu a São João Batista que se curado, colocaria um boi todos os anos para homenagear o santo. Garantido também é conhecido por “Boi de Promessa”, “Boi do coração” e “Boi do Povão”.

Já com relação ao ano de criação do boi contrário, o Caprichoso, há muita controvérsia, uma vez que existe extrema rivalidade, fazendo com que ambas as entidades busquem se afirmar como a mais antiga, o que leva seus torcedores e integrantes a defenderem teses que sugerem datas de fundação mais remotas. Segundo site oficial do Caprichoso o boi foi fundado por João Roque, Félix e Raimundo Cid, em 20 de outubro de 1913. Os três fundadores seriam irmãos, nascidos em Crato (CE) e se mudaram para Parintins devido ao Ciclo da Borracha. Conta a história que os irmãos Cid ao mudarem-se para a ilha, sequiosos por recomeçar uma nova vida, fizeram promessas a São João Batista. Ao ter seus desejos realizados, a promessa foi cumprida: confeccionara um “boi”, feito de pano, e ofereceram a São João Batista. As cores azul e branco são típicas dos trajes usados pelos Marujos. Foi batizado por Caprichoso em alusão a “aquele que capricha”, é teimoso e obstinado. Também é conhecido como boi galante, diamante negro, touro negro e boi da estrela.

Na região, outros bois são lembrados, mas apenas esses dois resistiram. Em Parintins, metade da cidade é vermelha (oeste) e a outra metade azul (leste), e o monumento divisor é a Igreja Nossa Senhora do Carmo.

Em seu início, o festejo acontecia nas ruas da cidade, nos dias dos santos juninos. Não se destacava dos demais folguedos existentes, como as quadrilhas juninas e as pastorinhas natalinas. A partir de 1965, o boi começou a ser protagonista da atração, vindo se apresentar no tablado e a expressar-se através de uma padronização artística que não parou, desde então, de se sofisticar. Em 1988 o tablado ganha novas estruturas, tornando-se arena Bumbódromo (olhando de cima tem forma da cabeça de um boi).

Ritual Fera de Fogo do Boi Garantido em 2014

Entre muitos fatos interessantes que rondam o evento:
  • Apesar das gigantescas alegorias metálicas, tudo é movido de forma manualmente por pessoas. 
  • Antigamente se matava o boi mais bonito e usava a cabeça do mesmo para montar a vestimenta do item principal, o boi, chegando a pesar em média 40 quilos. Hoje, graças ao artista Jair Mendes, a fantasia, conhecida por “boi biônico”, mexe diferentes partes, é feita de massa, espuma, madeira, entre outros materiais e pesa em média 14 quilos. 
  • Marcas como Coca-Cola, Santander, etc., que tem como cores o vermelho em seus logos, nesta região, comercializam suas embalagens na cor azul para não perder uma fatia do mercado. 
  • Os ritmistas cantam e tocam toadas, com letras falando sobre lendas e mitos da floresta amazônica e do tema escolhido. 
  • A festa atrai turistas de todos os cantos do país e também do exterior. 
  • Cada equipe é composta por mais de três mil pessoas 
As apresentações são avaliadas pelas histórias contadas, conforme o tema escolhido por cada agremiação anualmente, levando em consideração a evolução dos 21 itens: apresentador, levantador de toadas, batucada (ou marujada), ritual indígena, porta-estandarte, amo do boi, Sinhazinha da fazenda, rainha do folclore, cunhã-poranga, boi-bumbá (evolução), toada (letra e música), pajé, tribos indígenas, tuxauas, figura típica regional, alegoria, lenda Amazônica, vaqueirada, galera, coreografia e organização do conjunto folclórico.

O Festival de Parintins ocorre todos os anos no último final de semana do mês de junho. Esse ano será realizado nos dias 24, 25 e 26 de junho, a partir das 21h. É transmitido ao vivo pela TV A Crítica (filial da Record) e os assinantes NET podem conferir em pay-per-view.
Fontes de pesquisa

Cavalo Marinho
http://wikidanca.net/wiki/index.php/Cavalo_Marinho
Folguedo Reis de Boi (ES)
http://www.clednews.com/2010/12/o-autentico-boi-de-reis-de-cuite-e.html
http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/00002040.htm
Folguedo Cavalo Marinho http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300673501_ARQUIVO_Textocompleto.pdf
http://cavalomarinho6a.blogspot.com.br/
Folguedos
http://www.cultura.rj.gov.br/artigos/a-festa-em-perspectiva-antropologica-carnaval-e-os-folguedos-do-boi-no-brasil
Festival de Parintins
http://www.cultura.rj.gov.br/artigos/a-festa-em-perspectiva-antropologica-carnaval-e-os-folguedos-do-boi-no-brasil
http://www.portaldomarcossantos.com.br/2012/06/27/confira-todos-os-itens-que-disputarao-os-votos-dos-jurados-este-ano/
Tamires Santana, 26 anos, é empresária de Bonga Produções, jornalista de formação e designer gráfico de paixão. Trabalha na área de criação e conteúdo em projetos culturais e educacionais voltados à arte urbana e o graffiti. Seu trabalho pode ser conferido em http://tamisantana.wix.com/oficial

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