29/04/2014

Explorando os sentidos

Por Débora Francisco




Você se lembra daquelas aulas de língua portuguesa sobre figuras de linguagem? Se sua resposta foi sim, provavelmente, você se lembrará do que chamamos de sinestesia.

Para os esquecidos de plantão, vai aí um refresco para a memória. Expressões como “grito áspero” e “voz escura” exemplificam o que é a utilização da sinestesia como figura de linguagem, mais especificamente, figura da palavra. Este recurso está muito presente na poesia simbolista da nossa literatura. Autores representantes desse período literário como Cruz e Souza, Alphonsus de Guimaraens, e de outros períodos, como Mário de Andrade e Casimiro de Abreu, usaram e abusaram da sinestesia em suas obras. Veja alguns exemplos:

“As falas sentidas, que os olhos falavam
Não quero, não posso, não devo contar”. (Casimiro de Abreu)


“Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do sol que a Dor da Luz resume...” (Cruz e Souza)



Ao observarmos os recortes desses poemas, percebemos a mistura, a combinação ou a transferência de sentidos, e essa é a definição pura e simples do termo em pauta. Um perfume evocando uma cor (olfato + visão) ou um som evocando uma imagem (audição + visão), por exemplo, é o cruzamento de sentidos que traz uma beleza toda especial à arte da palavra.

A sinestesia como figura de linguagem é um assunto que faz parte dos estudos da minha área de formação (Letras) e achei melhor começar falando do que eu conheço bem, mas decidi tratar sobre esse tema após ler um artigo publicado pelo periódico britânico “The Guardian” que aborda a sinestesia dentro dos campos da psicologia e da neurociência. Nesse contexto, ela assume um caráter ainda mais interessante, pois passa a ser vivida de fato por indivíduos chamados de sinestetas.

Sinestetas são pessoas capazes de relacionar, por exemplo, cores a letras e números, cheiros e gostos à música ou o toque à visão. Sabe-se que pelo menos 4,4% dos adultos possui essa habilidade.

Alguns exemplos famosos desses seres privilegiados pela natureza são:

Richard Feynman (1918-1988). O físico americano, ganhador do Nobel de 1965, dizia ver letras e números coloridos. Enquanto dava aulas, ele via letras xis marrom-escuras flutuando no ar.
Wassily Kandinsky (1866-1944). Tudo indica que o pintor russo misturava quatro sentidos: visão, audição, olfato e tato. Ele chegava até a cantar os tons de cores que pretendia usar na paleta.
Eddie van Halen (1955-presente). O guitarrista americano, fundador da banda Van Halen, usou o dom de ver notas musicais coloridas para criar a "nota marrom", usada em discos da banda.
Vladimir Nabokov (1899-1977). Quando criança, o autor russo reclamava que as cores de seu alfabeto de madeira estavam erradas. Criou vários personagens sinestetas.
Pharrel Williams (1973-presente). Em entrevista para o programa Nightline (do canal americano ABC), o produtor e artista do hip-hop disse que “sempre visualizou o que ouvia, era como ouvir cores estranhas”.
Stevie Wonder (1950-presente). O cantor/compositor/produtor tem a habilidade de associar sons a cores.

Esses são apenas alguns exemplos dentre muitos outros os quais tomei conhecimento. É interessante observar que grande parte deles é formada por artistas. Já que sou uma amante das artes, fico ainda mais fascinada em saber como é que a coisa toda funciona. Algumas das perguntas que pipocaram em minha mente enquanto eu tentava entender sobre o assunto foram: O que faz alguém ser um sinesteta? O que acontece no cérebro dessas pessoas? Existem testes para saber se eu sou um sinesteta?

O que faz alguém ser um sinesteta?
Estudos recentes realizados pela equipe do Professor de Psicopatologia Desenvolvimental da Universidade de Cambridge, Simon Baron-Cohen, afirmaram que a sinestesia é uma condição transmitida geneticamente.

O que acontece no cérebro dessas pessoas?
As informações captadas através das cores são analisadas no lóbulo temporal cerebral, que é uma área muito próxima à área do cérebro que lida com a forma física dos números; ambas as áreas estão localizadas no giro fusiforme. Acredita-se que uma anormalidade genética faz com que as terminações neurológicas dessas duas áreas se “cruzem”. Tomografias cerebrais realizadas em sinestetas que veem números com cores confirma esse dado. Quando a maioria das pessoas veem números pretos em um fundo branco, somente a área de seu cérebro que lida com números é ativada. No entanto, quando pessoas com sinestesia olham para a mesma imagem, a área de seu cérebro que lida com cores também é ativada.

Existem testes para saber se eu sou um sinesteta?
Existem alguns. Ramachandran, um famoso neurologista, e seu colega Ed Hubbard criaram um teste para identificar sinestetas que enxergam números com cores.

Olhe para esta imagem:




A maioria das pessoas enxerga um monte de números 5. Rapidamente, elas percebem que alguns estão invertidos e são na realidade vários números 2. Um sinesteta, por outro lado, imediatamente enxerga um triângulo formado por números 2, já que 2 e 5 ficam distintos em cores diferentes.

E então? Você faz parte dos 4,4%?
Se você gostou e se interessou pelo assunto, veja este vídeo do TED Talks onde o sinesteta Neil Harbisson conta sobre sua habilidade de “ouvir cores” e como ele usa a tecnologia para expandir e explorar sua percepção.(no recurso “Subtitles”, acione a legenda em português do Brasil). 



Referências
Imagens: 
Composição VIII - Wassily Kandinsky
1923 (140 Kb); Óleo sobre tela, 140 x 201 cm (55 1/8 x 79 1/8 pol); Museu Solomon R. Guggenheim, Nova York  (http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/kandinsky/)


Débora Francisco é tradutora, intérprete, professora de inglês e português. É estudante de Letras e ingressou na Oficina Teatral do grupo A Ordem do Caos em 2014.

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