03/11/2014

Pouca morte para tanta vida

Hoje, em vez de uma das minhas listas sobre assuntos que estão a toda na internê, trago ao blog um texto produzido pela amiga e jornalista Tamires Santana, que aborda um tema evitado até de ser pensado por muitos de nós: a morte. Aproveitando o gancho do dia de finados (em 2 de novembro), que tal nos aprofundarmos um pouco na história dessa data e conhecermos mais sobre sua comemoração em outras culturas?

Abraço!
Gi Olmedo
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Qual é a verdadeira vida? Dê-me no máximo um século e hei de descobrir


Por Tamires Santana

Já passou, mas tem coisa que não é pra se pensar apenas em épocas festivas, é pra ser repensado diariamente. Não estou falando das eleições presidenciais, mas sobre o Dia de Finados, vulgo “dia dos mortos”, comemorado no dia 2 de novembro.

Grande parte das pessoas morre de medo (desculpe o trocadilho) ao tratar de assuntos fúnebres, sem perceber que a toda hora algo está morre e se renova, inclusive elas mesmas: de células a pensamentos. Este temor cria tantas resistências, que até mesmo o mercado de venda de planos funerários é prejudicado. Pra alguns, entrar em um cemitério, só em caso de morte de algum ente próximo ou em caso de morte própria — mas, neste caso, já seria tarde e não haveria muita escolha, né?

Por que raios comemorar o dia dos mortos?, alguns se perguntam.
Oras, tudo graças aos Papas Silvestre II (1009), João XVIII (1009) e Leão IX (1015). Desde o século XI os cristãos eram obrigados a dedicarem-se aos mortos um dia por ano – costume este já praticado desde o século 1°, quando visitava-se os túmulos dos mártires nas catacumbas para rezar pelos que morreram sem martírio. Estando em 2014 e ninguém sabendo mais o fundamento de cada coisa, mantém-se a tradição (ou imposição), com ou sem medo.

Pois bem, aí eu é que pergunto: por que tanto medo?
  1. Pensar no tempo que se deve empregar ao tratar sobre o assunto é no mínimo assombrador. É preciso falar de um futuro que pode se tornar presente a qualquer momento, baseado em lembranças (passado) de quem já foi, mas com aquela sensação de que ainda está aqui. Mas não está. E onde está? Pior, pra onde eu vou quando for a minha vez? Incertezas da vida de dar medo, que dirá da morte.
  2. Existe uma patologia exclusiva para assuntos fúnebres, a qual a ciência batiza de tanatofobia (do grego θάνατος, Thánatos, "morte") que nada mais é o medo de morrer, de coisas mortas ou de qualquer coisa associada com a morte. Segundo o filósofo Jacques Choron, existem três tipos de medo da morte: medo do que vem depois da morte (ligado às filosofias religiosas, castigos, solidões, sentimento de culpa etc.); medo do evento ou do processo de morrer (sofrimento prolongado, fraqueza, dependência, estar exposto e vulnerável etc.); e medo do "deixar de ser" (é o mais terrível, com o conflito entre o nada versus a continuidade após a morte, o não ser)
  3. A nossa formação de mundo (desde criança) é responsável em mistificar a imagem negativa que se tem sobre a morte. Também pudera, uma vez que é atrelada à foice, à caveira, às paisagens sombrias, à escuridão, sentença, punição, solidez, medo, susto, mistério etc.
  4. Existe um sentimento de apego total a tudo e a todos. Sim, meu caro (já dizia minha avó), enquanto não desligar-se do mundo material, a morte será um tormento. Isto significa que um muquirana não tem vez? Vai ficar com medo enquanto não deixar de se importar a deixar o que tem e/ou deixar para quem fica?! Meu amigo, é nestes casos em que se vira uma alma penada.
No entanto, visto que a única certeza da vida é justamente “bater as botas”, comece a morrer e renascer a partir de agora mesmo. Pra começar, basta dar uma espiada nos diferentes pontos de vista apresentados, mas como a crença é algo que povoa o imaginário de quem crê, tire suas próprias conclusões, pois a morte já tem a dela [rsrsrs]:

“Poca muerte para tanta vida”

No México, a morte é uma parte da vida e não o sinônimo de tristeza. Acredita-se que as almas vão para um lugar melhor – e, por isso, não há motivo para chorar. No Dia de los Muertos, acredita-se que as almas dos antepassados têm “permissão” para voltar ao mundo dos vivos e reencontrar seus entes queridos. Por isso, são montadas oferendas em cima das tumbas nos cemitérios e altares nas casas e escolas com os objetos que o falecido mais gostava.
Lá, a data é comemorada entre os dias 31/10 e 02/11, mas já inspira regiões brasileiras, como é o caso de Brasília com o festival Oaxaca Mágico, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB).

Morrer: cruz credo, Ave Maria!

No Brasil, existe uma cultura de finados que ganhou peso e sofrimento. É o momento oportuno para relembrar quem já passou por aqui, o que normalmente provoca muita saudade e, em alguns casos, arrependimento. Quando criança, minha avó me contava que tempos atrás não se podia varrer a casa, assistir televisão, pentear o cabelo, fazer festas (nada de churrasco aproveitando o feriadão), assim como todos deveriam ir aos cemitérios rezar às almas. Confesso que me aproveitava da regra de “não varrer a casa”, mas sempre achei exagerado o clima mórbido que se criava.
Por outro lado e na mesma medida, no Brasil é possível se deparar com culturas e religiões que têm uma visão bem diferente acerca da morte, assim como dos espíritos que o acompanham. Normalmente estes pontos de vista diferentes vêm de religiões que permitem a incorporação de espíritos, o que oportuniza um contato direto com o além. Algumas delas são o kardecismo ou espiritismo, a umbanda, o candomblé, a macumba (normalmente confundida com o ritual de umbanda e mais encontrada em algumas partes no Rio de Janeiro), o catimbó (presente em regiões do nordeste), entre outras.

Morrer é elevar-se

Em tradições de origem Bantu, o Dia dos Mortos representa a ascensão do mundo espiritual, um momento de comunhão e troca entre as duas realidades, sendo que o universo dos mortos é o mais poderoso e tem mais força, porque está numa outra dimensão. Para o bantu, o luto é um processo que começa com a morte e é eterno, por ficar no coração e na mente das pessoas e, caso os antepassados não sejam bem venerados, pode causar infortúnio às comunidades.

Si se pate bon Ginen sa-a
No Haiti e na República Dominicana – e em algumas partes de Cuba e EUA -, apesar do vodou (seja ele haitiano, daomeano ou beninense) ter um caráter extremamente negativo para a maioria dos ocidentais, é em essência mais espiritual do que religioso, dotado de muita profundidade cultural, além de ter caráter revolucionário, contribuindo até com a Revolução Haitiana (1791-1804). Por ser uma religião que cultua os antepassados e entidades conhecidas como loas, há a visão de que os espíritos são forças poderosas, ainda que invisíveis e podendo se materializar no mundo de cá.
Portanto, “se não fosse pelos loas” (do original Si se pate bon Ginen sa-a) seria impossível entender o relacionamento além X alguém, de cunho sagrado, o que significa que o medo da morte, como muitos sentem, no vodou passa longe.

Sem dúvida existe muito mais “visões de mundo” que ajudariam a quebrar o medo e as convicções, incluindo “Morte e Vida Severina”. Fica a cargo da afinidade de cada um, além do interesse, é claro. Mas uma coisa é certa: nada como um espírito para ajudar a tirar a sombra da morte. Só não espere se tornar um [rsrsrs].


Tamires Santana é um ser vivo, dotado de inteligência e conhecimento (até se prove o contrário). É pai, mãe e espírito, ainda que nem um pouco santo. Estudou, trabalhou, buscou, andou — inclusive na linha 7-Rubi da CPTM (de dia e de noite) e hoje continua fazendo tudo isso, mas com a convicção de que quanto mais se busca, menos se sabe. Escreve apenas sob pressão e sobre assuntos que podem servir ou não para quem leu. Portanto, apesar de nunca ter ido ao Haiti, fica para reflexão o provérbio haitiano: "kaka kankou chen pa anyen; se tranble janm nan ki tout" - em tradução livre: "defecar como um cão não é grande coisa; é o tremor das pernas do cão que torna a experiência real". 

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